quinta-feira, 31 de julho de 2014

Regressividade tributária + regressividade dos gastos públicos = desigualdade de renda



Por Thiago Caldeira

Muito se fala a respeito da necessidade de uma reforma tributária. Em vários momentos, nos últimos 20 anos, o governo federal tentou capitanear uma ampla reforma do sistema tributário, no sentido de torná-lo mais simples e mais progressivo. 

Quase sempre as tentativas esbarraram no interesses dos diferentes entes federativos, que impediam a conclusão dos trabalhos legislativos por receio de perda de arrecadação ou perda de competência para legislar e gerir a arrecadação dos tributos, em outras palavras, perda de poder e influência.

Nos anos recentes, devido à constatação de que uma ampla reforma tributária exigiria um enorme esforço de articulação política, o governo federal e o Congresso parecem ter abandonado essa alternativa e optado por ações pontuais: isenta-se um setor aqui, aprimora-se uma forma de arrecadação acolá...

No meu entendimento, apesar da regressividade do sistema tributário ser uma realidade e um mau a ser combatido, este não é o maior dos males causadores da péssima distribuição de renda no país. Isso porque muito pior do que a regressividade no sistema tributário é a regressividade na despesa pública, ou seja, o gasto público direcionado a quem já está em nível de renda elevado para os padrões brasileiros.

Sabe-se que a progressividade é uma exigência imposta pelo princípio constitucional da capacidade contributiva, segundo o qual o encargo tributário deve recair sobre aquele com maior condição financeira para tal. O princípio da capacidade contributiva pode ser satisfeito por meio de: i) alíquotas progressivas, em que maior a renda ou patrimônio do contribuinte maior seria a alíquota do tributo, ii) alíquotas seletivas, ou seja, alíquotas maiores para produtos predominantemente consumidos por ricos (produtos supérfluos, quase sempre); e iii) maior tributação sobre a renda e patrimônio e menor tributação sobre o consumo.

Ocorre que a aplicação do princípio da capacidade contributiva muitas vezes se choca com outros princípios tributários, como o da praticidade e neutralidade, este último entendido como a não interferência na otimização da alocação dos meios de produção e das escolhas de consumo. Como exemplo de escolha pela praticidade, cita-se que é muito mais fácil e menos burocrático arrecadar tributo sobre o consumo de energia elétrica do que sobre a renda dos contribuintes.

Outro exemplo de choque entre princípios é que a adoção de alíquotas seletivas, em tese geradora de benefícios, pode causar diversas distorções no sistema de preços, como aumentar o consumo de bens poluentes ou bens de produção ineficiente, soterrando a desejada neutralidade tributária.

Também, ao se utilizar alíquotas progressivas exageradas sobre a renda e patrimônio, viola-se a neutralidade tributária devido a um possível desincentivo ao investimento e ao trabalho. Além disso, aumenta o incentivo para fuga de capitais para outro país e aumento da sonegação.

Tais exemplos explicam, em parte, o fato do sistema tributário brasileiro como um todo ser regressivo, ou seja, tributar proporcionalmente mais os pobres do que os ricos.

Diversas ações pontuais poderiam reduzir a regressividade, por exemplo, tornar o ITCMD, que incide sobre doação e herança, progressivo (alíquotas maiores para faixas de herança e doação maiores), ainda que haja problemas de praticidade e neutralidade.

Minha crítica, no entanto, reside principalmente na injustiça do gasto público que ocorre em políticas supostamente “universais” e “sociais”. Diversos programas ditos sociais, bem intencionados, acabam por aumentar a desigualdade de renda, na medida em que os beneficiados estão em uma faixa de renda mais favorecida. Exemplos:

a)    O custo anual com os subsídios dados pelo BNDES a empresários escolhidos já corresponde ao custo do programa Bolsa Família (este sim um programa social “progressivo”, pois focado nos pobres), de aproximadamente R$30 bilhões;
b)    Os subsídios indiretos atualmente dados ao consumo de energia elétrica e ao consumo de gasolina, que beneficia tanto pobres quantos ricos, mas mais intensamente aos ricos, pois estes consomem mais gasolina e energia elétrica que os pobres. Além de diversos outros subsídios para produtores (de café, etanol, etc) e para o consumo de diversos bens e serviços (o mais recente, sobre a passagem aérea);
c)    Os gastos com ensino nas universidades públicas, onde a maior parte dos alunos são classe média alta[1] e classe alta[2] (bem-vindas as cotas para provenientes de famílias de baixa renda);
d)  O sistema de pagamentos de pensões por morte, em que a dependência é presumida. Nesse caso, o cônjuge recebe por toda a vida mesmo que seja uma pessoa riquíssima, independentemente da idade, tempo de contribuição e tempo de união.

Para piorar, a atividade de arrecadar e gastar mal ainda carrega o custo burocrático de toda uma gama de serviços administrativos (fiscalização do gasto, custo com professores e manutenção nas universidades, etc), nos quais é certo que alguma parte dos recursos se perde no caminho via ineficiência e corrupção.

Não é por acidente que, mesmo com uma carga tributária entre as maiores do mundo, somos um dos países mais desiguais.

O gráfico abaixo, apresentado em artigo no Valor Econômico, é mais um exemplo de como nosso sistema de arrecadação/gasto é pouco progressivo. A redução do índice de desigualdade (Índice de Gini) em função da tributação mais transferências de recursos é menor que 10 pontos percentuais no Brasil, enquanto países de carga tributária semelhante (Reino Unido, por exemplo) conseguem reduzir em torno de 20 pontos percentuais.


Assim, minha opinião é que, dada a complexidade e empecilhos de reformar o sistema tributário para torná-lo mais progressivo, principalmente reformar as regras de competência tributária, mais urgente seria tornar o gasto público mais direcionado para quem realmente precisa dele.




[1] Para quem não sabe se é classe média ou classe média alta, saiba que com uma renda acima de 5 salários mínimos (R$3.625) você já estará entre os 9% mais ricos do país. http://mansueto.wordpress.com/2013/12/29/nos-somos-a-elite/
[2] Para a distribuição dos alunos de universidade pública por renda: http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0034-71402012000100005&script=sci_arttext#2a

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