Inicialmente, pensei em escrever a respeito do julgamento, no STF, sobre os planos econômicos Cruzado, Bresser, Verão e Collor I e II, em que se discute a suposta perda causada aos poupadores pela execução desses planos pelos bancos comerciais, públicos e privados. Meu ponto principal era que, independente do mérito da decisão do STF, há grande insegurança jurídica no Brasil causada pela i) morosidade do judiciário e ii) pelo histórico de instabilidade econômica do Brasil, pautado por crises cambiais, calotes ou ameaças de calotes, intervencionismo descontrolado.
As ações judiciais propostas por milhares de poupadores tiveram, em sua grande maioria, êxito em várias instâncias processuais, agora culminando no julgamento em definitivo no STF. A pressão sobre os magistrados parece se pautar pelos efeitos sobre o sistema financeiro, caso os bancos tenham que devolver centenas de bilhões de reais aos poupadores. Fala-se na redução de liquidez na economia (dinheiro disponível para empréstimos e outras aplicações) na casa de trilhão de reais. Não pretendo entrar em detalhes sobre a correção ou não desses cálculos, mas sim no termo conhecido em economia como risco moral e na (falta de) responsabilidade dos economistas que comumente promovem planos aventureiros e inovadores: os heterodoxos.
Grosso modo, risco moral é o efeito de incentivar um comportamento perverso de um indivíduo, quando tomamos uma decisão que, aparentemente, no curto prazo e numa análise rápida, não apresenta ter incentivos ruins. É o caso, por exemplo, quando um professor aplica uma prova muito fácil para os alunos: na prova seguinte a grande maioria terá estudado muito menos, pois o incentivo dado quando da primeira prova foi de que não é necessário estudar muito para passar de ano.
O termo é perfeitamente aplicado ao problema que se depara o STF: tomar uma decisão que tenha como objetivo reduzir os efeitos prejudiciais ao sistema financeiro significa i) eximir de responsabilidade o Estado que adota planos econômicos arriscados, ii) incentivar a judicialização e protelação eterna, além de iii) incentivar a imprevidência das empresas/indivíduos.
Sabe-se que há milhares de casos
em que os bancos entraram em acordo com os autores das ações, pagando parte do
pleiteado e encerrando o processo, enquanto outros bancos fizeram provisões na
medida em que perdiam as causas em várias instâncias. Para aquele banco que se
precaveu, o STF decidir pela não procedência do pleito dos poupadores em razão
dos efeitos significa ter passado por idiota. O incentivo dado será o de
protelar ao máximo a causa e, ao final, alegar que qualquer decisão contrária
terá um efeito catastrófico.
Nas ciências políticas e sociais é comum definir um indivíduo como “de esquerda”, enquanto o outro é da turma da “direita”, Sicrano é conservador, e Fulano é liberal. É permitido também variações em torno da categoria, de acordo com o tema em debate: fulano é liberal em assuntos de religião, mas conservador a respeito de sexo, e por aí segue.
Já nas ciências econômicas, no Brasil, a separação de escolas de pensamento está voltada para os seguintes grupos: os ortodoxos e os heterodoxos. A definição não é clara e vou tentar traçar algumas características com base na minha experiência pessoal como economista aluno e profissional.
Ortodoxo é todo economista que segue o mainstream econômico, termo utilizado para descrever as teses em economia que dominam ou prevalecem na economia capitalista, seja nas decisões de governo, empresas ou indivíduo. O pensamento ortodoxo obedece aos pressupostos da economia clássica, cuja origem remete aos princípios básicos de microeconomia: racionalidade, individualismo, agentes em busca da maximização de suas utilidades, sejam elas o melhor consumo, o melhor preço, a melhor escolha.
Há pressupostos que parecem
óbvios, como a ideia de que o bom é melhor do que o ruim, logo, sendo o
indivíduo racional, escolhe o bom (pelo menos o que ele julga ser o bom para si
mesmo).
Como está ancorado no indivíduo, e não em um ente coletivista (como o socialismo), consagra-se, nessas teorias, a liberdade individual e o mercado capitalista sob a vigência de regimes democráticos (na verdade, a afluência econômica permitida pelo capitalismo é catalisadora de revoluções democráticas, a ser explorado em outro artigo).
Também pela origem na microeconomia (dedução da parte para o todo), faz-se uso na ortodoxia do auxílio da matemática e da estatística, a fim de extrapolar para o mundo agregado da macroeconomia conclusões a respeito do efeito das taxas de juros, do câmbio, do consumo, etc.
Em resumo, o economista ortodoxo respeita religiosamente as forças de mercado, como, por exemplo, a lei de oferta e demanda. Não deseja lutar contra elas, pois são essas forças de mercado que baseiam a racionalidade por trás dos modelos e teorias que segue. Talvez por isso, em respeito a forças que não conseguirá controlar, o economista ortodoxo tomador de decisões de políticas públicas opta por intervir o menos possível nas interações entre os agentes de mercado e, quando intervém, tem como premissa a racionalidade econômica.
O economista ortodoxo acredita que os indivíduos são racionais e responderão aos incentivos (bons ou ruins) dados pelo poder público e, sendo um mercado capitalista um ambiente democrático para a revelação das escolhas (de consumo, de valoração de bens e trabalho), qualquer interferência do Estado tem o potencial de causar grandes distorções.
Ressalta-se, aqui, que não necessariamente o economista ortodoxo está alinhado com a classificação “direita” ou “esquerda”. Nada impede, por exemplo, que economistas ortodoxos criem programas sociais como o Bolsa Família. Também não é verdade afirmar que as políticas econômicas ortodoxas não podem ser criativas. O plano Real, por exemplo, é um plano bastante criativo e baseado em princípios clássicos da ortodoxia, tendo excluído na medida do possível controle e indexação de preços e confiado no equilíbrio de mercado.
A existência de um salário mínimo é um bom divisor entre economistas ortodoxos e heterodoxos. Um puro ortodoxo não iria propor a existência de norma legal estabelecendo salário mínimo, pois corresponde a impor a alguém a escolha entre trabalhar ou não. Se uma pessoa aceita trabalhar por menos que o salário mínimo, por que eu devo impor que ela não celebre esse contrato de trabalho e fique desempregada, sem ganhar nada? Exclui-se, no entanto, a situação em que se utiliza o salário mínimo para definir piso de aposentadoria (como no Brasil), configurando na verdade uma política de assistência social e não um preço para o mercado de trabalho.
A teoria econômica alinhada com a ortodoxia é dominante em todo o mundo. Os únicos ambientes em que prevalecem ideias refratárias às teorias ortodoxas são Cuba, Córeia do Norte e universidades brasileiras (não todas).
A heterodoxia é a escola de pensamento que refuta a ortodoxia. Seus seguidores apontam problemas no processo de racionalidade econômica dos agentes, como, por exemplo, a falta de informação suficiente para a escolha entre opções de consumo, de trabalho, etc. Comumente acreditam ser capazes de direcionar as forças de mercado, intervindo no processo de escolhas individuais. Os heterodoxos têm muita descrença no processo de equilíbrio do mercado e, de forma contrária, têm absoluta fé na sua capacidade de corrigir as falhas do mercado, de tomar decisões acertadas em nome do interesse de todos.
Como os economistas heterodoxos negam com facilidade a legitimidade das escolhas individuais e apontam problemas no ambiente de mercado, justificam a intervenção na economia sem dificuldades. Pelos mesmos motivos, fazem pouco caso da fundamentação microeconômica (em especial os brasileiros) e justificam as decisões com o auxílio da Sociologia, História, Filosofia, etc.
A heterodoxia formou escola no Brasil e teve um ápice na década de 80 e início de 90, período no qual os heterodoxos implantaram os planos econômicos agora sob contestação no STF. Tiveram também forte presença no regime militar, em especial no final da década de 70, o que demonstra que a heterodoxia não distingue governos de esquerda ou direita, conservador ou liberal, seja lá o que esses termos significam.
Todos esses planos foram
fracassados pelo excesso de intervencionismo e pelo fato de que os indivíduos
respondem a incentivos e tomam decisões conforme a racionalidade econômica
(maximizam seus ganhos), uma prova de que tais planos ignoraram o básico, de
forma semelhante ao que vemos hoje na Venezuela. Optou-se por políticas como o
controle de preços, ou seja, o ajuste fino, pelo Estado, do equilíbrio na
oferta e demanda de todos os produtos da economia.
Decidir agora que os planos econômicos não podem produzir efeitos, quando se
formou ao longo de décadas o entendimento no judiciário de que os poupadores
foram lesados (não discuto o mérito se foram ou não), é claro incentivo ao
comportamento irresponsável e inconsequente por parte de economistas,
políticos, administradores públicos. A heterodoxia tem que assumir sua responsabilidade
pelos fracassos e parar de prejudicar o país, não somos laboratório de
experimentações.
Eu acredito que, independente da decisão do STF, seja ela favorável ou não aos requerentes (poupadores), o ponto de vista e convicções dos heterodoxos, responsáveis por tamanhas perdas, será sequer arranhado. Não parece se tratar de filosofia e, sim, de uma crença que beira a religiosidade.
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ResponderExcluirConcordo com você Leo. Como disse no texto, eles têm "absoluta fé na sua capacidade de corrigir as falhas do mercado, de tomar decisões acertadas em nome do interesse de todos". Na verdade, acho que há uma origem bem autoritária mesmo, típico da esquerda roxa. Não veem legitimidade democrática no processo de livre mercado e acham que podem substituí-lo tomando decisões a partir de sua cabeça iluminada.
ResponderExcluirMe interessei principalmente pelo trecho do texto que afirma que os heterodoxos "justificam as decisões com o auxílio da Sociologia, História, Filosofia, elevando sobremaneira o grau de obscuridade das políticas econômicas". É com essas ferramentas que negam que "a afluência econômica permitida pelo capitalismo é catalisadora de revoluções democráticas"? Eu penso que sim.
ResponderExcluirO problema está em sentir mais do que pensar.
"As políticas públicas devem ser analisadas, na medida do possível, com rigor
ResponderExcluirsemelhante ao observado em outras áreas de pesquisa, como a medicina, em que novos medicamentos e procedimentos são testados com grupos de controle."
http://mansueto.files.wordpress.com/2010/08/discursomarcoslisboa.pdf