quarta-feira, 14 de janeiro de 2015

Contabilidade Criativa e o Superávit Imaginário do Governo Federal

Por Ahmed El Khatib






A “Essência Sobre a Forma”, embora não considerada explicitamente como Princípio Fundamental da Contabilidade, à luz da Resolução Nº 1.282/10, exerce uma importante influência no modo de se “fazer” contabilidade, sobretudo com o advento e aplicação no Brasil das International Financial Reporting Standards (IFRS) ou Normas Internacionais de Contabilidade. Tal influência vai ao encontro da maior subjetividade trazida por esse novo padrão contábil. A flexibilidade na escolha dos critérios contábeis, as lacunas jurídicas e as ambiguidades existentes nas leis e normas contábeis fazem com que a prática da contabilidade criativa, cada vez mais frequente, seja a melhor forma de se atingir o resultado patrimonial desejado pelos manipuladores de balanços patrimoniais.

Entende-se por Contabilidade Criativa um fenômeno contábil, nascido na década de 80 e com forte origem Anglo-Saxônica, que se desenvolveu e foi aperfeiçoada no Brasil. Consiste, basicamente, na produção de informações diferenciadas e desejadas a partir de ambiguidades existentes nas normas de contabilidade. Diante disso, o uso da contabilidade criativa permite com que se distorça um resultado real e se atinja um resultado fictício, de acordo com os interesses e os objetivos de quem se utiliza dos resultados da prática. Para que se alcancem tais objetivos, são utilizados mecanismos fundamentados na legislação, já que as leis não são suficientemente claras e permitem tais manobras.

O Brasil ficou conhecido nos últimos meses, sobretudo nos meses de novembro e dezembro de 2014, por aplicar fortemente a contabilidade pública criativa, com a finalidade de dar cumprimento à meta fiscal de superávit primário do governo federal.  Visando o equilíbrio das contas públicas, o regime fiscal brasileiro adota a política do superávit primário, para o qual são estabelecidas, anualmente, as metas de resultado, por meio da Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO). 

Formalmente, o governo federal tem atingido as metas estabelecidas na LDO, o que demonstra a aplicação correta e equilibrada de sua política fiscal. No entanto, ao analisarmos as contas públicas com mais rigor, perceberemos que o governo federal vem se utilizando, de modo mais frequente e explícito, de ajustes contábeis para alcançar tais resultados positivos com o reconhecimento, por exemplo, de receitas consideradas atípicas ou extraordinárias em seus resultados ou com a postergação do pagamento de despesas, por meio de sua inscrição em restos a pagar.

Através da última manobra citada acima, o governo posterga parte das despesas de um ano ou exercício para o subsequente, o que acarreta numa série de problemas para a execução do seu orçamento  implica em dificuldades para o fechamento das contas do governo.

Um sistema contábil, seja ele societário ou governamental, está calcado em padrões consistentes e confiáveis, que refletem a realidade ou essência econômica das transações de forma a evidenciar seus impactos no patrimônio. Entretanto, por não termos sistemas, atualmente baseados na forma jurídica, existem brechas que são utilizadas criativamente pelo governo federal.

Se nos basearmos no que diz o Manual de Contabilidade Aplicado ao Setor Público (MCASP) de 2014, notaremos que a dívida pública tem origem tanto interna quanto externa e é composta de todos os passivos que exigem o pagamento de juros e/ou do principal pelo devedor ao credor em data acordada. A meta para o superávit primário surgiu da necessidade do governo de arrecadar mais do que gasta, desconsiderando nesse resultado o pagamento de juros e correção monetária da dívida pública, uma vez que não fazem parte da natureza operacional do governo e são reflexos financeiros de déficits ocorridos no passado. 

Desta forma, ao destinar parte do orçamento público para o pagamento da dívida, com o objetivo de demonstrar maior capacidade de cumprir com seus compromissos financeiros e se tornar mais confiável perante seus credores e investidores internacionais, o superávit primário torna-se mais um indicador de política fiscal. Como dito anteriormente, a meta anual a ser alcançada é fixada pela LDO, por meio do Anexo de Metas Fiscais.  O superávit primário pode ser calculado a partir de duas metodologias: “acima da linha”, que corresponde à diferença entre as receitas e as despesas do setor público; e “abaixo da linha”, que corresponde à variação da dívida líquida total, interna e externa, nesse último caso, o cálculo parte dos saldos de dívida pública para obter as necessidades de financiamentos.

Na medida em que o resultado positivo só pode ser obtido pela superioridade das receitas em relação às despesas, por óbvio a sustentabilidade das contas públicas impõe a diminuição das despesas ou aumento das receitas, e não somente “manobrar” a postergação contábil (criativa) das despesas com o aumento de suas inscrições em restos a pagar, como observado, se beneficiando do regime contábil de competência em detrimento ao efetivo desembolso de caixa.

Considerando a importância da política fiscal na administração da política econômica, uma vez que as ações do governo para administrar seus níveis de arrecadação e de gastos afetam e são afetadas pela conjuntura econômica, deve-se ponderar sobre o impacto que procedimentos criativos podem causar na credibilidade das finanças públicas. Dessa forma, o debate deve ser acrescido pela busca, por parte do Estado, de alternativas voltadas à melhoria contínua do caráter do ajuste fiscal brasileiro e não um “mero ajuste contábil”.


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